Incrustada nas margens do rio Araçuaí, na afluência do Calhauzinho, a cidade de Araçuaí é o símbolo da luta de um povo humilde, vencida pelo seu modo de viver: alegre, descontraído, festeiro, amigo e solidário. Mas, a pujança da cidade de hoje tem história controvertida sobre sua formação.
A Barra do Pontal é o ponto de encontro de dois grandes rios: o Jequitinhonha e o Araçuaí, este afluente daquele. O lugarejo situa-se exatamente no vértice do encontro das águas dos dois rios, outrora navegáveis, em ponto adequado, para quantos quisessem prosseguir viagem até o mar ou, navegando rio acima, exercer o comércio com os povos ribeirinhos atingindo Diamantina, ou mesmo as cercanias do Serro.
O lugar foi considerado estratégico e ideal, até que ocorreu uma dissidência entre esses dois rios. Os motivos da divergência ainda não são conhecidos, mesmo decorrido mais de um século. Pode ser que tenha nascido da luta por prestígio ou por poder. Ambos os rios, de comparável tamanho tinham suas peculiaridades e, talvez pelo fato de o Araçuaí ser o afluente e não querer aceitar as regras impostas pelas águas, um pouco mais caudalosas, do Jequitinhonha, ou por puro desejo de auto-afirmação, abriu uma dissidência e ofereceu aos canoeiros, comerciantes e viajantes que aportavam na Barra do Pontal uma alternativa mais livre, ou mais libertina, cerca de dez quilômetros acima, no ponto de confluência com um outro curso d’água, só que muito menor, o Calhauzinho. Ali a situação se invertia. As águas mandantes eram as do Araçuaí e as regras a seguir eram por ele criadas e impostas. Ali começou um povoado de poucos que se tornou a cidade de Araçuaí, orgulho de muitos.
Entender a dissidência, só pelo significado etimológico da palavra. Derivada do latim, dissidentia é sinônimo de cisma, cisão. Acontece quando parte dos membros de uma corporação se separa por divergência de opiniões.
Já divergência (discordância, desacordo, discrepância, dissensão) significa a posição de linhas que se afastam progressivamente. Dissidência e divergência fazem parte da história do mundo. Os exemplos são inúmeros. Adão divergiu das normas impostas por Deus, Caim divergiu de Abel, Lutero do Vaticano, Rússia dos Estados Unidos, os Inconfidentes da Coroa Portuguesa, os partidos políticos entre si, os candidatos a cargos eletivos, os herdeiros sobre o quinhão herdado, os pais dos filhos, os filhos dos pais, os predadores das presas, Cruzeiro do Atlético e mais um sem número de exemplos, nas diversas áreas do conhecimento humano. Política, esporte, administração, família, religião, economia e até encontro de águas, todos lidam com dissidências e apresentam, em escala maior ou menor, um certo grau de divergência. Nem por isso as instituições sucumbem, o esporte deixa de ser praticado, os homens perdem a fé em Deus, as eleições deixam de existir as águas deixam de correr para o mar. Todos os rios correm para o mar. E o mar, contudo, não transborda (Eclesiastes).
É possível que a divergência na interpretação de fatos da vida seja importante para o amadurecimento e para a reflexão dos povos.Talvez a dissidência seja até uma etapa necessária para o crescimento do homem.
A dissidência recentemente ocorrida no ACA-BH, como outrora a dos dois rios, não tem base em nenhum fato excepcional. Luta por poder, por um pouco mais de prestígio, pela afirmação pessoal, pela competição técnica do futebol jogado com arte, vão aumentando as águas e a correnteza do nosso rio interno e, no âmago da alma, os pequenos problemas de outrora vão se avolumando até constituir um incômodo, um desassossego, uma inquietude, uma ansiedade, uma agonia, um sentimento de desconforto constante e crescente que acaba por inundar a mente até o transbordamento que culmina na cisão, na separação. Embora esse sentimento ocorra em uma minoria dos membros, dependendo do grau em que o sentimento aflora e na capacidade de liderança e agregação dessas pessoas, outros membros a elas se juntam, apoiam, planejam, participam, por acreditarem que os anseios são legítimos e que a guerra precisa ser vencida. Nós, humanos que somos, temos necessidade de cultivar pelo menos um pouco de vaidade, até mesmo como forma de auto-afirmação e de prestígio entre os pares. Esse sentimento, se não enfrentado, se não exposto em toda a sua plenitude, em toda sua nudez acaba por fantasiar os fatos e a disfarçar a realidade.
O problema decorre da filosofia de vida que todos receberam, segundo a qual a vida é uma luta, uma competição onde só o vencedor merece respeito. Enorme equívoco.
A dissidência do ACA-BH não foi um fato excepcional, mas foi, pelo menos, inesperado e de difícil explicação. Os integrantes mais novos, incorporados em passado recente, talvez não compreendam a razão primeira da versão BH da Associação Centenária de Araçuaí. Para entender é preciso remontar, novamente, às origens da própria cidade.
Como resultado da dissidência dos rios Jequitinhonha e Araçuaí, nasceu um novo povoado, uma nova opção para quem queria mais sossego ou mais privacidade, já que o lugar era menos exposto do que a Barra do Pontal. Ali floresceu uma civilização com valores mais coesos do que os da Barra, pois que os moradores do novo povoado, quase todos, eram nascidos e crescidos no lugar. Não eram viajantes, nem representantes do comércio. Não eram de fora. Nasceu, a maioria, com a futura cidade. Amou a terra, acostumou-se à natureza de muito sol, muito calor, muita seca, mas, também, muito amor e alegria. Os futuros habitantes cultivaram a amizade e a solidariedade. Constituíram uma comunidade unida, amante da música, da farra, da irreverência e do trabalho.
Os tempos mudaram, a cidade cresceu, se expandiu, se povoou. A população aumentando mais do que as ofertas de trabalho, passou a ser ameaça para uma sobrevivência digna. Forçou a migração dos habitantes para cidades mais evoluídas, à procura de trabalho e de estudos de nível mais avançado. Migraram os corpos, mas as almas permaneceram k-iauzeiras. O amor à terra natal, descobriu-se, não é privilégio apenas dos moradores do Cariri ou das caatingas e sertões do nordeste. A comunidade de ausentes k-iauzeiros só fez crescer e, como na cidade grande o encontro pode tornar-se um acaso e a visita um incômodo para o visitado, a dispersão começou a minar alguns valores culturais dos araçuaienses residentes em Belo Horizonte. Porém, os muitos anos que se passaram, mostraram que, mesmo à distância, havia muita afinidade entre os oriundos das terras do vale. Foi talvez por perceber esse fato, que um pequeno grupo de ilustres k-iauzeiros, liderados por um não menos ilustre médico que tinha veneração pelas terras araçuaienses, usando uma pelada de futebol como motivação e a aproximação dos conterrâneos como forma de resgate dos usos e costumes do K-iau, convocou a comunidade de Araçuaí, residente em Belo Horizonte, a participar de um encontro dominical, onde se pudesse encontrar os amigos, conversar, cantar, beber cerveja, refrigerante ou cachaça, contar casos, compartilhar churrascos arroz com pequi, farofa batata frita, bolo e jogar futebol. As reuniões de fins de semana passaram a ser programa obrigatório para boa parte dos k-iauzeiros.
Ali freqüentavam atletas e também casais, namoradas, recém nascidos, crianças maiores e chefes de famílias que, morando em BH, mantinham no coração o gosto pelas coisas do K-iau. A freqüência aumentou, e com ela o barulho da alegria contagiante dos de Araçuaí, mesmo em distantes terras. Isso foi motivo de reclamação dos vizinhos da quadra de futebol e de uma intervenção da justiça que culminou no fechamento do bar. Sem bar, não deu para resistir. Mudou-se o local do encontro para quadra na avenida dos Andradas. O local era mais amplo, mas a cultura dos donos divergia daquela do Vale e foi insuficiente para entender que a amizade e a alegria da ACA exigia uma certa dose de consideração e respeito. O atendimento precário motivou a nova mudança. O retorno para o local de origem da pelada foi devido à reestruturação do bar da rua Conde de Linhares até que o grupo decidisse por um local de consenso.
Então, a surpresa. A dissidência. No início não declarada, mas aos poucos admitida e finalmente assumida. O que se ouve dizer é que a quadra, antes boa, tornou-se inadequada para o tamanho do futebol ACA que, como o K-iau, evoluiu muito ao longo dos anos. O motivo não parece lógico, embora possa ter sido a gota d´agua que transbordou e inundou a mente sensibilizada.
O julgamento é difícil, já dizia Hipócrates, mas, mesmo evitando o julgamento das causas que culminaram na separação de membros do ACA-BH, (e mais que de membros, de amigos, de irmãos e de famílias) já se pode dizer que a conseqüência não é boa para ninguém. E se não é boa, para que manter os grupos separados? O que será das dinastias, que os membros da ACA-BH criaram para deleite e saudável gozação, dos Carmona, dos Nonato, dos Orsine, dos Onnis, dos Cunha-Melo?
Todas essas considerações deixam no ar uma certeza: a dissidência desagrega. Traz infelicidade. Constrange. Ainda que dela possa surgir um grupo mais forte, mais consistente, mais capaz e mais amigo, como aconteceu na divergência entre os rios Araçuaí e Jequitinhonha, a partir da qual, Araçuaí, a cidade, acabou por se mostrar mais poderosa do que a Barra do Pontal. O caminho mais lógico é a união (ou re-união) entre os grupos.
Divergência vai continuar a existir e a dividir grupos, por mais coesos que sejam. Se essa realidade não for entendida, dentro de alguns anos teremos quatro, oito, dezesseis, trinta e duas ACAs, todas competentes na técnica do futebol, mas, certamente, dissociadas de suas origens, de suas raízes, de seus costumes, de sua gente, de suas famílias, de seus amigos.
A melhor homenagem que se pode prestar a craques nossos de todos os tempos, Alvimar, Bertolo, Misói, Nitinho, Zé Vício, Jarbas, Tonico, Omar, Múcio, Cao, entre os que já se foram e Severino, Lalado, Antônio Martins, Ioiô, Xerife, Elcio, Antonão Curió, Dedega, Joãozito, e tantos outros dessa “nova” geração é o grupo da ACA-BH se manter unido para cultivar as memórias do futebol e das coisas boas de Araçuaí. Para isso cada membro das duas facções deve estar completamente ciente da sua responsabilidade na remodelação de um futuro, que admita as divergências sem necessidade de separação de grupos, de separação de amigos, de irmãos, ou de famílias.
Se cada um se conscientizar da sua importância nesse processo de resgate das coisas da terra do Vale, verá que todos são importantes. A qualidade da quadra não pode ser fator determinante de uma dissidência que não se sustenta, se os fins que nortearam a criação da ACA–BH forem o objetivo comum de todos os que hoje freqüentam as reuniões de domingo. O bom senso diz que a separação não deve ser boa para nenhum membro, bem intencionado da ACA. É preciso fazer a ocasião, para que as linhas de pensamento que hoje se separam possam voltar a convergir.
Contudo, ninguém se auto-acusa de ter “mau senso” e, aceitando que a natureza desconhece as boas intenções, se essa forma de pensar não refletir a realidade dos fatos, se outras forças desconhecidas, que não admitem o diálogo foram determinantes da dissidência, só resta ao verdadeiro k-iauzeiro, torcer para que cada um dos dois grupos encontre um bom caminho. Embora agora dissidentes, foram eles, afinal, que ajudaram a criar, consolidar e dar força à ACA-BH. Que cada qual se fortaleça e possa tornar-se uma referência das tradições, da cultura, da arte, da sabedoria, da agregação e até mesmo de um grande time de futebol de quadra sintética.
Que cada grupo possa representar, com orgulho e competência, a cultura da terra querida. E, se a dissidência, contrariando as expectativas, for fator de crescimento, que os grupos possam se manter separados apenas pelo local das quadras, mas que isso não seja motivo para inimizades, acusações, mal-querências e disputas de títulos que não estão em jogo. Que, mesmo freqüentando quadras diferentes, possam os araçuaienses autênticos manter a sua unidade, amizade, congraçamento e alegria costumeiros. Que, mesmo separados, possam cantar um único hino e carregar a mesma bandeira.
Entretanto, separação não deve ser o desejo da maioria. Um sonho de muitos é que a Barra do Pontal e a cidade de Araçuaí possam, no futuro, voltar a se unir, quem sabe, em uma cidade única, banhada por dois rios diferentes, mas na sua essência muito semelhantes, apesar das suas divergências de origem geográfica e volume d´água.
Uma esperança de muitos é que a ACA-BH volte a ser uma bandeira de agregação das várias correntes, com respeito às divergências e às normas que tornam possível a convivência harmônica do homem em uma sociedade civilizada, forte e autêntica, rica em tradição e arte, características abundantes no povo de Araçuaí. Que as divergências não sejam utilizadas como fator desagregador, de uma cultura tão rica tão admirada, tão carismática, mas sirvam como motivação para busca de interação, congraçamento, amizade, união e paz entre os habitantes do vale do Jequitinhonha, em geral e de Araçuaí, em particular.
JRCM, outubro 2006.
Comments